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Poemas de Sylvia Beirute (poetisa de Portugal)

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Mensagem por Paulista245 Seg Jul 12, 2010 10:43 am

INTIMIDADE

não se trata de uma sede ser capaz de fazer evaporar
um oceano
ou de uma mentira poder ter absoluta razão, ou que
envaidece a abstracção na oxidação do cansaço estético.
e mesmo que não saibamos de que se trata,
sempre diremos que não consiste a fotografia deste momento
em inevitar a obliteração dos exemplos, de uma
consciência que extravia
colégios de identidade, palácios de consolação, relógios
casuais que dão forma aos pormenores do tempo.
encontramo-nos na orla do círculo, na superfície do branco
após o negro que o percorre e mutila como a
invenção que brota ou o poema que transnomina no ventre
e cujos versos mudam de lugar em caso de fogo
e natureza intacta.
sabemos apenas que o presente
é uma prótese do passado, e talvez isso chegue
para que devamos fechar os olhos, contornar os nossos
corpos sem uma só morte sobrevivente, e deixar que
o momento prossiga em completo vazio.

ADOPÇÃO

eu sei que este poema não foi escrito para
que procure um leitor.
na verdade, foi escrito para que procure
um novo autor que me substitua na
impossibilidade de o revisitar brevemente.
é quase uma entrega para adopção, um
redefinir da sua morada que hoje ainda é
a membrana de cidade e silêncio
em redor de um útero que plange;
precisará de antídotos, o poema; de alguém
que lhe eduque o ritmo, lhe mantenha
actualizadas as definições escondidas,
os caminhos rectos, o ensine a usar os
espelhos, a ler-se a si mesmo pelo des-
conhecer-se indizível na língua dos outros,
a fazer a dobra nos seus versos-folha, a
contornar os outros poemas que contemplarão
a sua eterna juventude; um autor que o
escreva sem escrever, apenas
prossiga na despalavrização de algumas
penínsulas preliminares do impressionável,
que o faça esquecer para sempre
o meu suspiro ofegante e doente, a higiene
demasiado íntima para uma arte credível.


O MUNDO

teríamos entrado noutro mundo
que não este engessado
da intensidade do impossível.
um sem lastro e que não começasse
em fevereiro no dia sete às dezanove
e dezasseis com uma refeição à espera, um
vinho sobre a mesa, e
a broa de avintes por cortar.
um sem antídotos pós-utópicos e hipotaxes,
um sem perguntas e frinchas, janelas
que voam com cabeças reveladas,
um descontextualizado até ao zero
e com sequências de arte intransigindo para trás,
um em que para amar
necessário não fosse
esperar que a paixão acabe.


DEPOIS DO PRIMEIRO VERSO

este verso não chegará para a lucidez como
chega a nitidez para o alívio. se digo {é noite
ao canto da boca}, a memória sumarenta cresce
e propicia os peixes que se desintegram do esquecimento
e na imediatez dos estilhaços do momento
vagueiam na extremidade do que poderá
ser descrito como {inconsciência}.
e nele há uma longa viagem de fora para dentro
e de dentro para fora } há sempre uma ferida no
seu orfanato de feridas e a metamorfose é panorâmica
no rebordo do alarme do seu silêncio rolante.
após este verso o poema chegará ao seu porto
porque afinal:
longe da solidão qualquer lugar é um exílio.


CLUSTER

e na luz inadequada se move o teu corpo como
algo por dizer,
projectante sem confundir o interior da mão
com um rosto que baixou ao subsolo do silêncio.
e imaginarás algo.
e pegarás no teu ponto. na tua vírgula.
gritarás um verso sem que as palavras individuais
o notem, o oiçam a perfurar o seu
próprio verbo.
e arremessando esse ponto, e essa vírgula, ambos
em direcção ao céu introspectivo e especulativo
das cores que lhe concretizam a profundidade, ganharás
tempo; tempo para que o verso se espalhe a partir
do seu gomo infindável,
contamine o eco difuso da mão de vidro, guarde
o bom-senso de um revólver que espera atento
a morte que falta a um corpo.
e não tarda regressarão caindo com a mesma força
que aquela que usaste para cima: o teu ponto magnífico,
a tua vírgula com material e forma de lupa,
como pregos por cima do teu verso com
formato de raio e cuidado, com laringe de flecha e erro,
com lisonjeio sobre o tempo invertebrado.
quando caírem sobre ti, sobre o teu regresso íntimo,
saberás por onde continuar, e sobretudo: onde parar.


NO DIA DA MORTE DE JOSÉ SARAMAGO

agora, livre da coadjuvância das afectações: os
deuses se escondem nas artérias do teu
silêncio, na tua fraqueza perfeita porque
sem o hábito de se auto-observar.
voltaste a ti: numa outra intermitência da morte, com
o sublime que é tudo aquilo que ignora um todo e
conduz uma perspectiva até ao quociente interno
de uma invisibilidade que fala através
do teu questionário incicatrizável.
e daí tudo vês: vês-me faltar de propósito à
conclusão do meu poema, vês o peso
da omnipresença do abstracto, da hora antiga,
vês as minhas infâncias e urgências juntas e tar-
dando hoje em se converterem, devolvendo-me
ao que eu era: ao início do dia.


POEMA DE BENEFICÊNCIA

introduza um colapso numa dúvida. recolha-a por elementos.
coloque perguntas ao redor. as respostas situam-se entre
tempos verbais. um detalhe apaga-se para dar lugar a outro.
a memória como um todo. qualquer força para medir é uma
inexpressão na arte. não há um só caminho aberto em
direcção a um caminho aberto. imperdibilidade é um modo
feio de beleza. as coisas mais belas são decíduas porque
não assíduas. como aquele fragmento de biografia sem
palavras que procura corporalidade no texto. o seu
instinto difásico é como um diálogo em que as duas
linguagens se friccionam e encontram como que numa orla
central em que tudo o resto se autopune até à morte,
ficando um quadro de órgãos estrelados. quem entrou
aqui introduziu um colapso numa dúvida, recordo. quem
tem dúvidas não morre verdadeiramente. recolher
elementos de dúvida é uma ocupação como qualquer outra.
os ocupados não morrem. a estética escultural do olfacto
é mais importante do que as auto-estradas. por isso, vá
a pé na imaginação férrea do silêncio. cheire a paisagem
que se absorve lentamente ao fundo e que rasga com ternura
a ternura do céu de outono. não ande demasiado. quanto
mais andar mais esperança surge. surgir esperança é surgir
um espelho, e um espelho é difuso apenas na interioridade.
intimidade. é como o poema. o poema que mudou. que se
deslocou até aqui porque fez uso das possibilidades,
probabilidades, matemáticas e deslumbres que a arte oferece.
ontem, quando o visitei, o poema era literatura. hoje é
mistificação das bases. e ter um pensamento único,
convenhamos, é a fruição da vanguarda. a vanguarda
converte porque gera metades de tudo o resto.
e tudo o que é metade se perde.


WALLY


(traduzir o poema. traduzir a tradução.
traduzir a tradução da tradução.
equilibrar uma hesitação na bússola. )
há uma espécie de wally
no corpo do poema que abdica
da sua construção metódica, que se esconde
nos fotogramas dos ecos que se entrelaçam
para escurecerem
sem ceder a arrumações de ideias,
existências completas, corporeidades
absolutas.
não importa mudar as palavras, o poema
seguirá com a sua expectativa legítima,
o seu âmago azul,
a sua particular desmemória e demência,
seguirá
com a validade que dissolve sentidos latos
no interior ácido de sentidos estritos, será
como neve numa recordação invisível.
e eu? eu ainda aqui resto, na beira-mar instintiva
de uma beleza mais fluvial, meditativa,
num fósforo íntimo sobre a rasura
de uma comparação entre dois gestos,
eu procurando o meu wally ou um pequeno
modo de o encontrar,
eu insinuada sobre a importância dos instantes,
eu sobre o poema esperando
o mais fundador sinal de inspiração.
E a propósito: que horas são no poema?


poemas de Sylvia Beirute
retirados de http://sylviabeirute.blogspot.com/

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